Decreto-Lei n.º 11/2010, de 14 de Junho, relativo ao Acesso dos Cidadãos ao Direito e à Justiça

Preâmbulo

As diferentes problemáticas conexas com a efectivação dum real direito de acesso dos cidadãos ao Direito e à Justiça têm merecido resposta da sociedade desde tempos recuados da Humanidade. Há notícias históricas de que já em Atenas se nomeavam advogados para defesa dos pobres e de que em Roma a defesa dos indigentes era espontaneamente assumida por advogados.

Embora a prática de garantir assistência judiciária aos mais necessitados se mantenha também durante a Idade Média, é apenas no século XX que, na maioria dos países, se estabeleceu como garantia constitucionalmente consagrada.

A Constituição da República da Guiné-Bissau consagrou um amplo direito dos cidadãos não apenas no acesso à Justiça como igualmente à informação e a protecção jurídica.

Dispõe a artigo 32.º da Lei Fundamental guineense que “Todo o cidadão tem o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os actos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a just iça ser denegada por insuf iciência de meios económicos”. E o artigo 34.º do mesmo diploma reforça a garantia constitucional no acesso à justiça ao estipular que “Todos têm direito à informação e à protecção jurídica nos termos da lei”. E, no caso particular do direito processual penal, estabelece o artigo 42.º, n.º 3 que “o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, estabelecendo a lei os casos e as fases em que essa assistência é obrigatória”.

Não obstante a amplitude programática dos textos constitucionais citados, na prática judiciária, o instituto da assistência judiciária na Guiné-Bissau tem funcionado de forma deficiente e sem conseguir responder às verdadeiras dificuldades com que a população em geral se depara no exercício do direito de acesso à justiça. Embora as causas mais significativas devam ser imputadas às graves carências económicas que o Estado guineense atravessa, não pode ignorar-se que também a falta de um adequado enquadramento normativo nesta matéria acentua as dificuldades com que o cidadão frequentemente se depara em situações justificadoras do recurso aos tribunais.

No caso específico da Guiné-Bissau, o instituto da assistência judiciária não conseguirá garantir aos cidadãos um efectivo acesso à justiça se a intervenção ficar apenas pela implementação normativa de mecanismos destinados a permitir a litigância, de forma mais ou menos gratuita, aos mais desfavorecidos economicamente, sem resolver ou minorar os bloqueios estruturais que mais frequentemente afastam os cidadãos de recorrer aos órgãos jurisdicionais. Referimo-nos à necessidade de mudança de atitudes, sob o ponto de vista cultural, que contribuam para que a justiça seja encarada prioritariamente como função destinada a satisfazer um direito pertencente à população em geral e, concomitantemente, proporcione os meios adequados aos operadores judiciários para a sua administração eficaz. O equilíbrio na prossecução de tais finalidades impõe que o Estado proceda a um investimento racional dos escassos meios financeiros disponíveis de forma a que as instituições judiciárias criadas possam ser efectivamente utilizadas pela sociedade a que se destinam, sem descurar a manutenção das condições necessárias ao exercício das diferentes profissões da área da justiça.

Dito de outra forma, importa que o Estado não só proporcione o acesso gratuito à justiça às camadas da população economicamente mais desfavorecidas mas que, sobretudo, crie condições institucionais para o seu exercício através de mecanismos de informação geral de tais direitos e da garantia de que esses meios sejam acessíveis aos cidadãos em geral.

Em consonância com a realidade guineense, afigura-se-nos que a garantia de um efectivo acesso dos cidadãos à justiça carece não apenas de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de preparos e custas nos termos a definir legalmente mas, igualmente, de meios que assegurem a existência de um patrocínio privado ou oficial eficaz em todo o território nacional. A concretização dos objectivos antecedentes exige, por um lado, que sejam disponibilizadas verbas suficientes para suportar os custos decorrentes da assistência judiciária gratuita e, por outro lado, que o Governo implemente soluções que assegurem o patrocínio na totalidade das regiões judiciárias por profissionais aí radicados, uma vez que a maioria dos escritórios de advocacia se encontram situados na cidade de Bissau.

As propostas legislat ivas que seguidamente se apresentam, visam cumprir as intenções programaticamente vertidas nas normas constitucionais anteriormente citadas no pressuposto de que a aprovação dos diplomas em causa seja acompanhada das necessárias medidas a nível orçamental.

Assim, o Governo, nos termos do artigo 100.º, n.º 1, alínea d) da Constituição da República e sob proposta do Ministro da Justiça, decreta o seguinte:

CAPITULO I – DISPOSIÇÕES GERAIS

ARTIGO 1.º – Objectivos

1. É objectivo fundamental do presente diploma proceder ao enquadramento legal de soluções que assegurem aos cidadãos condições eficazes de acesso ao direito e à justiça que lhes garantam o exercício ou a defesa dos seus direitos.

2. Para concretizar o objectivo referido no número anterior, criam-se mecanismos capazes de suprir as diferenças resultantes das condições sociais ou culturais, de carência económica, de informação ou de localização geográfica que possam influenciar negativamente o acesso ao direito de cada cidadão individual.

ARTIGO 2.º – Dever de informação jurídica

1. Compete ao Estado, em geral, realizar acções e criar os mecanismos adequados a proporcionar à população o conhecimento necessário a garantir o exercício dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, através do recurso às instituições judiciárias que devem administrar a justiça.

2. De um modo particular, cabe ao Ministério da Justiça e à Ordem dos Advogados prestar a informação jurídica necessária a tomar conhecido o direito e o ordenamento jurídico nacional, através de publicações, campanhas de divulgação e outras formas de publicitação.

ARTIGO 3.º – Responsabilidade pelo funcionamento

Constitui responsabilidade do Estado, promover a publicação da legislação, a criação dos mecanismos e a promoção das acções necessárias a garantir um sistema de acesso ao direito e à justiça em termos eficazes e de qualidade.

ARTIGO 4.º – Cooperação institucional

1. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os mecanismos e as acções adequadas a garantir o acesso ao direito e à justiça, embora constituam prioritariamente obrigação do Estado, devem ser desenvolvidas em cooperação com a Ordem dos Advogados.

2. A cooperação institucional entre a Ordem dos Advogados e o Ministério da Justiça compreenderá todas as modalidades de assistência judiciária e as condições da prestação dos respectivos serviços constará de protocolos a estabelecer entre as duas Instituições.

ARTIGO 5.º – Modalidades de assistência judiciária

1. A assistência judiciária compreende as seguintes modalidades:

a) Consulta jurídica;

b) Apoio judiciário sob a forma de dispensa, total ou parcial, de custas, de preparos e do prévio pagamento de taxa de justiça;

c) Apoio judiciário através do patrocínio oficioso.

2. Ao mesmo requerente, podem ser concedidas cumulativamente ou apenas alguma das modalidades referidas.

CAPÍTULO II – CONDIÇÕES GERAIS DE ACESSO

ARTIGO 6.º – Âmbito

1. A assistência judiciária, em qualquer das suas modalidades, e concedida para questões ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretização, que versem sobre direitos directamente lesados ou ameaçados de lesão e desde que o requerente demonstre um interesse próprio.

2. Sem prejuízo das normas específicas do processo penal relativamente a esta matéria, a assistência judiciária pode ser requerida em qualquer jurisdição, independentemente da posição processual e de já ter sido concedida a uma das partes.

ARTIGO 7.º – Insuficiência económica

O direito à assistência judiciária só pode ser concedido a quem se encontrar em situação económica que lhe não permita suportar, total ou parcialmente, as despesas normais da causa.

ARTIGO 8.º – Recusa de assistência judiciária

A assistência judiciária, em qualquer das modalidades, deve ser recusada, sempre que:

a) O requerente não reunir os pressupostos legais para a solicitar;

b) Haja fundada suspeita de que o requerente se colocou dolosamente na situação de a obter nomeadamente, alienando ou onerando todos ou parte dos seus bens;

c) Ao requerente cessionário do direito ou objecto controvertido, mesmo que a cessão seja anterior ao litígio desde que tenha existido fraude.

ARTIGO 9.º – Presunção de insuficiência económica

Goza da presunção de insuficiência económica o requerente que:

a) Estiver a receber alimentos por necessidade económica;

b) O requerente em acção para prestação de alimentos;

c) For filho menor a requerer a investigação ou impugnação da sua maternidade ou paternidade;

d) Tiver a seu favor disposição legal que consagre tal presunção.

CAPÍTULO III – CONSULTA JURÍDICA

ARTIGO 10.º – Finalidades

1. A consulta jurídica tem por finalidade proporcionar aos cidadãos que o requererem o conhecimento dos seus direitos e deveres perante uma situação concreta da sua esfera jurídica.

2. A consulta jurídica também pode compreender a realização de diligências extrajudiciais ou actos de mediação ou conciliação, conforme dispuser o regulamento interno de funcionamento dos Gabinetes de Consulta Jurídica.

ARTIGO 11.º – Prestação da Consulta Jurídica

Compete ao Ministério da Justiça em cooperação com a Ordem dos Advogados criar, instalar e assegurar o funcionamento dos Gabinetes de Consulta Jurídica recorrendo aos serviços oficiosos de advogados e advogados estagiários.

ARTIGO 12.º – Legitimidade para solicitar consulta jurídica

1. Todo o cidadão, independentemente da sua situação económica, pode recorrer aos serviços de consulta jurídica.

2. A Consulta Jurídica é gratuita para quem estiver na situação prevista no artigo 7.º, os demais cidadãos pagarão uma taxa de justiça a fixar por despacho do Ministro da Justiça.

CAPÍTULO IV – APOIO JUDICIÁRIO

ARTIGO 13.º – Dispensa de pagamento

1.O apoio judiciário sob a forma de dispensa de pagamento de custas, de preparos, do prévio pagamento de taxa de justiça e dos honorários ao patrono, tem que ser expressamente requerida e a sua concessão pode ser total ou parcial, consoante as condições económicas do requerente.

2. Mesmo que não requerida expressamente, o tribunal pode conceder apenas o diferimento dos referidos pagamentos ou que aqueles sejam efectuados em prestações se a situação económica do requerente o permitir.

ARTIGO 14.º – Patrocínio forense

1. O apoio judiciário sob a forma de nomeação de patrono e pagamento dos respectivos honorários, tem de ser expressamente requerido ao tribunal e a sua concessão é válida tanto para a causa principal, como para o recurso e a execução, bem como para qualquer processado conexo com a causa.

2. O requerente pode sugerir o nome de advogado para a nomeação oficiosa se este residir ou tiver escritório na sede do tribunal.

ARTIGO 15.º – Legitimidade para requerer

O apoio judiciário pode ser requerido:

a) Pelo próprio interessado na assistência judiciária;

b) Pelo Ministério Público, em representação daquele;

c) Por advogado a pedido, mesmo verbal, do interessado;

d) Por advogado nomeado pela Ordem dos Advogados quando as circunstancias o justificarem.

ARTIGO 16.º – Cancelamento do benefício

1. O tribunal oficiosamente ou a requerimento do Ministério Publico, deve retirar o apoio judiciário, ouvido o requerente:

a) Se este adquirir meios suficientes para poder dispensa-lo;

b) Quando se provar por novos documentos a não subsistência dos fundamentos da concessão;

c) Se os documentos em que se baseou a concessão forem declarados falsos por decisão transitada em julgado;

d) Se o requerente for definitivamente condenado como litigante de má-fé;

e) Se ao requerente vier a ser atribuída, em acção de alimentos provisórios, uma quantia para suportar o custo da acção.

2. Sob pena de ficar sujeito à aplicação das sanções relativas à litigância de má-fé, o requerente na situação prevista na alínea a) do número anterior fica obrigado a declará-lo.

CAPITULO V – DO PROCEDIMENTO

ARTIGO 17.º – Apresentação do pedido

1. O pedido de apoio judiciário para a dispensa de pagamento deve ser apresentado nos articulados da acção a que se refere ou em requerimento autónomo, quando for em momento posterior a estes ou o processo os não admita.

2. O pedido de apoio judiciário sob a forma de patrocínio é apresentado em simples requerimento em que se identifique o processo a que se destina.

ARTIGO 18.º – Requisitos do requerimento

1. No requerimento, devem ser descritos os factos e os motivos de direito em que se fundamentar o pedido, mesmo de forma sumária e mencionando obrigatoriamente os rendimentos e remunerações que recebe e os encargos, contribuições e impostos que suporta.

2. As provas dos factos, nomeadamente em relação à insuficiência económica, devem ser apresentadas com o requerimento, sendo aceites todos os meios de prova admissíveis em direito.

3. A prova documental apresentada, deve referir expressamente o fim a que se destina.

ARTIGO 19.º – Efeitos do requerimento

1. A apresentação do pedido de apoio judiciário suspende a instância se for formulado em articulado que não admita resposta ou quando não sejam admitidos articulados e importa a não exigência de quaisquer preparos.

2. Com a apresentação do requerimento, suspende processual em curso que só voltará a correr de novo a partir da notificação do despacho que dele conhecer.

3. Em processo penal nunca se suspende a instância como efeito da apresentação do requerimento.

ARTIGO 20.º – Procedimento

1. Recebido e autuado por apenso o requerimento, o juiz profere despacho l iminar que, não, sendo de indeferimento, ordenara a citação ou a notificação da parte contraria para, querendo, contestar o pedido de apoio no prazo de oito dias.

2. Nos casos em que o pedido for apresentado no articulado ou no requerimento inicial, a citação referida no número anterior será efectuada com a citação para a acção, mas apenas a partir do momento em que a acção admitir a intervenção do demandado.

3. Quando o pedido de apoio for para nomeação de patrono, não há lugar a citação ou notificação.

4. A contestação é deduzida no articulado seguinte ao do pedido e, não o havendo, sê-lo-á em articulado próprio no prazo de oito dias.

ARTIGO 21.º – Outras diligências

1. O juiz ordenará as diligências que considerar necessárias para decidir o incidente.

2. Realizadas as diligências ordenadas pelo juiz ou nada havendo ordenado, os autos vão, por cinco dias, com vista ao Ministério Público para se pronunciar sobre o pedido.

ARTIGO 22.º – Decisão

1. Cumpridas as formalidades descritas nos artigos anteriores, os autos são conclusos ao juiz para, em oito dias, proferir decisão.

2. A decisão de denegar ou conceder deve ser fundamentada de facto e de direito e, neste último caso, especificar a modalidade do apoio concedido, as condições e extensão do que for concedido.

3. A decisão de denegação é notificada ao requerente para, em 15 dias, pagar a taxa de justiça e os preparos que devia ter efectuado e constituir mandatário, conforme o caso.

4. A decisão de concessão de apoio, quando for relativa a nomeação de patrono, é notificada ao requerente e ao nomeado que terá de, nos casos de nomeação anterior à propositura da acção, propô-la no prazo de 30 dias.

ARTIGO 23.º – Recurso

Das decisões proferidas sobre apoio judiciário cabe sempre agravo, independentemente do valor, com efeito suspensivo quando o recurso for interposto pelo requerente e com efeito meramente devolutivo nos demais casos.

ARTIGO 24.º – Custas do incidente

1. Não tendo sido deduzida contestação ou oposição no incidente de apoio judiciário, não haverá lugar ao pagamento de custas.

2. No caso contrário, as custas ficam a cargo da parte vencida.

ARTIGO 25.º – Normas subsidiárias

Nos casos omissos, aplicam-se, com as devidas adaptações, as normas do Código de Processo Civil.

CAPÍTULO VI – DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITORIAS

ARTIGO 26.º – Tribunais superiores

As competências atribuídas ao juiz da causa em matéria de apoio judiciário são, nos tribunais superiores, exercidas pelo relator.

ARTIGO 27.º – Honorários

1. Cabe ao Ministério da Justiça garantir o pagamento dos honorários ao patrono oficioso nomeado nos termos do presente diploma.

2. O juiz fixará o quantitativo dos honorários dentro dos limites estabelecidos legalmente e atendendo ao trabalho desenvolvido e à complexidade do processo.

ARTIGO 28.º – Revogação

São revogadas todas as normas que contrariem o disposto neste diploma.

ARTIGO 29.º – Entrada em vigor

O presente diploma entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Aprovado em Conselho de Ministros, de 8 de Outubro de 2009. – O Primeiro Ministro, Carlos Gomes Júnior. – O Ministro da Justiça, Mamadú Saliu Jaló Pires.

Promulgado em 25 de Maio de 2010.

Publique-se.

O Presidente da República, Malam Bacai Sanhá.

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